quinta-feira, janeiro 07, 2021

Garotos Entregues

Era tarde da noite, quase uma da manhã, dois jovens, visivelmente esgotados, empurravam suas respectivas bicicletas pela Avenida Prefeito Hirant Sanazar, em Osasco. Por que estariam empurrando em vez de se utilizarem do próprio veículo para se locomoverem?

Como já disse, pareciam estafados fisicamente. Cada um tinha nas costas a bolsa que indicava trabalharem para aplicativos de entrega de comida. Uma era vermelha, facilmente reconhecida. A outra, mais escura, não consegui reconhecer. Talvez nem fosse desses apps. Poderia ser específica de algum restaurante.

Não é nessa visão que pretendo me concentrar. Meu foco foi o cansaço visível pelo modo desajeitado do passo, como em situações que precisamos ultrapassar nosso limite de exercício esperado. Pensei em como era contraditório dois jovens, duas bicicletas e eles empurrando-as, em vez de montarem-nas para pedalar.

Lembrei que, muitos anos atrás (não sei dizer quantos), empurrei minha bicicleta por quilômetros na Rodovia Anhanguera. À época, nem sei dizer se celular já existia como um item mais comum. Não me recordo de possuir um nesse tempo, talvez um bip (pager), o que é certeza que não existia eram os aplicativos de entrega de comida.

Minha caminhada ciclística (empurrando a magrela) se deu pois a bicicleta do amigo Tiago, que estava comigo, furou o pneu e ainda estávamos longe do Parque São Domingos, onde morávamos, na capital paulista. Aprendi com a vida que "quem vai junto, volta junto". Não o deixaria empurrando e viria no pedal. Assim foi. Anos depois, soube do falecimento do Tiago, por uma ex-dele, amiga em comum. Fechados os meus parênteses - assumo, extensos - desta história, volto a Osasco e aos garotos.

Pensei em quantas entregas teriam feito naquela noite que justificariam o claríssimo e aparente cansaço. Cheguei até a pensar se eles estariam com fome, o quanto isso elevaria à décima potência o grau de quão contraditória era a cena. Cogitei a possibilidade de ter ocorrido com eles o mesmo que com o Tiago e comigo, mudando só o local da cena. E o horário também, já que era plena madrugada e em minha visão, acompanhava o sol se pondo.

Eu passei por eles e pensei até em como ajudar, mas, convenhamos, como ofereceria qualquer ajuda? Como abordaria? Com certeza, estranhariam a generosidade. Eu, no lugar deles, estranharia também. E no mesmo instante que dei seta para a direita e mudei da faixa esquerda para a central, tomei um buzinaço de um carro logo atrás que me fez retomar a atenção somente na via, devido à barbeiragem que acabara de cometer, mudando de faixa na pista sem a devida observação ao retrovisor. O descuido, fruto do sono e até de um relaxamento devido ao horário de menos fluxo fizeram com que eu esquecesse esse fato e essa visão ali, na hora.

Ao relembrá-lo para escrevê-lo, posso ter carregado as palavras em algumas observações e despercebido detalhes da cena. Todavia, o que escrevo quase sempre começa em minha cabeça como uma pergunta que, muitas vezes, abre para outra, outra e mais outra.

Será que aqueles meninos ainda estavam longe de casa?

Será que a bike está boa pra ele trabalhar hoje?

Será que conseguiu descansar?

E muita gente se aborrece de descer o elevador pra receber a comida das mãos desse garoto. 

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